Conselho Nacional de Justiça proibiu os cartórios de registrarem escrituras de uniões poliafetivas
Em abril de 2016, no Rio de Janeiro, o funcionário público Leandro Jonattan da Silva Sampaio se uniu oficialmente a duas mulheres. Leandro, Thaís e Yasmin formam uma família poliafetiva, hoje com duas filhas fruto do relacionamento, ambas gestadas por Thaís. “Porém as duas se sentem mães das meninas e agem como tal, tendo carinho, amor e respeito”, garante Leandro.
Segundo Leandro, a família administra bem o preconceito, sendo os maiores ataques provenientes da internet. “Como a internet é uma ótima ferramenta para propagação de ódio, não ficamos fora do radar dos ‘haters’. Porém, entre nossos amigos e familiares a aceitação é ótima, salvo em alguns casos específicos, mas no geral a aceitação é muito boa”, diz.
Sobre a decisão do Conselho Nacional de Justiça – CNJ que, na última terça-feira, proibiu os cartórios de registrarem escrituras como a dele, Leandro, que termina a graduação de Psicologia no próximo ano, afirma que alguns pensamentos precisam ser desconstruídos. “Enquanto isso, vamos vivendo a nossa vida, felizes, nos amando e cuidando um do outro, independente do que o CNJ ache ou não”.
“Sinto que as leis, os entendimentos e julgamentos não estão acompanhando a velocidade das mudanças sociais e é necessária uma reformulação de pensamentos. Por exemplo, uma dúzia de homens que decidem que milhões de brasileiras são proibidas de fazer aborto. Meu sonho é que possamos viver em um país que as individualidades sejam respeitadas”, reflete.
Decisão é retrocesso, diz tabeliã responsável por 4 registros
A tabeliã Fernanda de Freitas Leitão, do 15º Ofício de Notas do Rio de Janeiro, foi a responsável pelo registro da escrituras de Leandro, Thaís e Yasmin. Até agora, foram realizadas, em sua Serventia, quatro escrituras de união poliafetiva, sendo três delas entre um homem e duas mulheres, e uma delas entre três mulheres.
Segundo ela, até o momento não ocorreu nenhum problema em função dessas escrituras. “Ao contrário, em um dos casos, inclusive, no das três mulheres, as partes conseguiram dois importantes efeitos: (i) inscrever as demais no plano de saúde familiar e, (ii) em outra situação, onde uma das partes teve um veículo apreendido e recolhido ao pátio do Detran/RJ, este órgão reconheceu a escritura de união poliafetiva como documento válido para autorizar a retirada do veículo pela companheira da proprietária do veículo. Sabe-se que apenas o cônjuge ou o companheiro do proprietário do veículo apreendido são autorizados pelo órgão para agir em seu nome sem procuração. Ou seja, o Detran reconheceu a parte como companheira”, ressalta.
Para a tabeliã, a decisão do CNJ é um retrocesso. “As uniões poliafetivas já são uma realidade social, se descortinando como um novo formato de família. Ademais, esse novo formato familiar converge perfeitamente com as decisões do Supremo Tribunal Federal exaradas na ADI nº 4.277, na ADPF nº 132, e, por fim, com o brilhante voto do Ministro Luís Roberto Barroso, no RE nº 878.694-MG, onde o mesmo preconiza: ‘Logo, se o Estado tem como principal meta a promoção de uma vida digna a todos os indivíduos, e se, para isso, depende da participação da família na formação de seus membros, é lógico concluir que existe um dever estatal de proteger não apenas as famílias constituídas pelo casamento, mas qualquer entidade familiar que seja apta a contribuir para o desenvolvimento de seus integrantes, pelo amor, pelo afeto e pela vontade de viver junto’”, destaca.
Um homem e duas mulheres no Brasil e uma mulher e dois homens no Canadá
No que se acredita ser a primeira decisão no Canadá, um tribunal da província de Newfoundland and Labrador – Terra Nova e Labrador – reconheceu três adultos como os pais legais de uma criança nascida dentro de sua família poliamorosa, segundo informações do jornal “The Star”. A família recorreu à Justiça depois que a província disse que apenas dois pais poderiam ser listados na certidão de nascimento da criança, filha biológica de terceiro desconhecido que não integra o relacionamento poliafetivo.
Relações poliamorosas são legais no Canadá. O juiz Robert Fowler, da divisão familiar da Suprema Corte de Newfoundland and Labrador, divulgou a decisão dizendo que a família inclui dois homens em um relacionamento com a mãe de uma criança nascida em 2017.
“A sociedade está mudando continuamente e as estruturas familiares estão mudando junto com ela”, diz a decisão de Fowler. “Isso deve ser reconhecido como uma realidade e não como um prejuízo para os melhores interesses da criança.”
Pessoas sofrem por terem que se enquadrar em modelos de relacionamento amoroso, diz psicanalista
Para a psicanalista e escritora, Regina Navarro Lins, as pessoas sofrem por terem que se enquadrar em modelos de relacionamento amoroso. “Gastam um tempo enorme com seus medos, culpas e frustrações. Como esses modelos tradicionais não dão mais respostas satisfatórias, abre-se um espaço para cada um escolher sua forma de viver, ou seja, a possibilidade de homens e mulheres viverem com mais satisfação. É lamentável que a decisão do CNJ proíba os cartórios de registrarem escrituras públicas de uniões poliafetivas. Será que cabe a esse órgão decidir a vida íntima das pessoas na medida em que não estão prejudicando ninguém?”, questiona.
Regina Navarro explica que ao analisar a história do amor constata-se que os comportamentos amorosos, e as expectativas em relação à vida a dois, são diferentes em cada período da História. “Desde cedo somos estimulados a investir nossa energia sexual em uma única pessoa. Mas não é o que acontece na prática. É bastante comum homens e mulheres casados compartilharem seu tempo e seu prazer com outros parceiros, geralmente, de forma secreta. A exclusividade é como um valor agregado ao amor porque, supostamente, quem ama só se relaciona sexualmente com a pessoa amada”, diz.
O poliamor como modo de vida, explica Regina, defende a possibilidade de se estar envolvido em relações “íntimas” e “profundas” com várias pessoas ao mesmo tempo. Segundo ela, nos Estados Unidos o poliamor existe como movimento organizado nos últimos 30 anos, acompanhado de perto por movimentos na Alemanha e Reino Unido. Há 13 anos atrás, em 2005, acontecia a Primeira Conferência Internacional sobre Poliamor em Hamburgo, Alemanha.
“A psicóloga americana Deborah Anapol, autora de um livro sobre o tema, diz que nossa cultura coloca tanta ênfase na monogamia que poucas pessoas se dão conta de que podem decidir sobre quantos parceiros amorosos/sexuais desejam ter. Ainda mais difícil de aceitar é a ideia de que uma relação com múltiplos parceiros possa ser estável, enriquecedora e duradoura. Trocar ideias a respeito de exclusividade sexual não é simples; provoca a ira dos conservadores e preconceituosos e ataques de todos os tipos. Essa discussão só será realmente possível quando a fidelidade deixar de ser um imperativo”, reflete.
Para a psicanalista, não é fácil discutir relacionamentos amorosos fora do modelo tradicional. “Pesquisa da Universidade de Michigan, EUA, demonstra que a forma que psicólogos e outros cientistas estudam os relacionamentos estão orientados para dar resultados – às vezes inconscientemente – que promovem a monogamia. A reação negativa a mudanças de comportamento estão sempre presentes. No início do século 20, por exemplo, quando surgiu o telefone, os conservadores protestaram dizendo ser uma indecência. Alegavam que a moça poderia estar recostada e a voz do homem entrar sensualmente pelo seu ouvido. Entretanto, a mudança das mentalidades está em curso. É possível, portanto, que daqui a algum tempo o poliamor não seja visto com tanto estranhamento”, expõe.
Entendimento do Conselho
O CNJ decidiu pela procedência do pedido de providência 1459-08.2016.2.00.0000. O placar final da votação foi de 7 votos pela proibição do registro de escrituras públicas de uniões poliafetivas, nos termos do voto do ministro relator, João Otávio de Noronha; 5 votos acompanhando a divergência parcial do conselheiro Aloysio Corrêa para permitir o registro, mas sem a equiparação com os direitos da união estável, e um voto totalmente divergente, do conselheiro Luciano Frota, pela improcedência do pedido.
Segundo a desembargadora aposentada e vice-presidente do Instituto Brasileiro de Direito de Família – IBDFAM, Maria Berenice Dias, a decisão do CNJ vai na contramão de todos os avanços que vem acontecendo neste século. “O significado do julgamento é uma sentença de reprovabilidade com relação a algo que existe, sempre existiu e vai continuar existindo, com escritura pública ou sem escritura pública. No momento em que tais situações baterem às portas do Poder Judiciário caberá à Justiça dizer se existirão efeitos jurídicos daquela manifestação. É de lastimar que órgão administrativo maior do Poder Judiciário tenha uma visão tão conservadora da sociedade de fato, como ela é”, observa.
Para o advogado Marcos Alves da Silva, diretor nacional do IBDFAM e estudioso do tema, a escritura pública de declaração de união poliafetiva é somente o registro de pessoas, no cartório, de que vivem daquela forma. “Ora, como se pode proibir a lavratura de uma escritura pública de qualquer tipo de declaração? Não faz sentido essa proibição. Isso simbolicamente significa um retrocesso. Um ato dessa natureza está eivado de inconstitucionalidade”, analisa.